quarta-feira, 23 de novembro de 2011

2ª Conferência do Desenvolvimento - CODE/Ipea

Começou hoje a 2ª Conferência do Desenvolvimento, promovida pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (CODE/Ipea). O evento está sendo realizado em Brasília (DF) e vai até o dia 25.
A 2ª CODE visa discutir o desenvolvimento nacional em suas várias vertentes, trazendo discussões heterogêneas a partir de eixos como: inserção internacional soberana; macroeconomia do desenvolvimento; proteção social, garantia de direitos e geração de oportunidades; sustentabilidade ambiental, entre outros.

Quem não está na capital federal pode acompanhar o evento a partir da internet. A transmissão online está acessível no link http://goo.gl/1b6e
Abaixo foto da mesa de abertura composta pelo presidente do Ipea, Márcio Pochmann; o ministro da SAE, Moreira Franco; o prof. Paul Singer, e outros mais.


Em sua fala, Pochmann destacou que “é preciso reinventar o desenvolvimento”.

domingo, 4 de setembro de 2011

IX Congresso Brasileiro de História Econômica

De 7 a 9 de Setembro será realizado em Curitiba (PR) o IX Congresso Brasileiro de História Econômica e 10ª Conferência Internacional de História de Empresas.
Na oportunidade, será apresentado artigo deste editor em parceria com José Raimundo Trindade e Danilo Fernandes.
O texto O Planejamento do Desenvolvimento Regional na Amazônia no Período 1946-66 e sua Relação com o Ciclo Ideológico do Desenvolvimentismo Brasileiro pode ser conferido na íntegra no campo PAPERS deste blog.

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Alterações no Medo da Chuva

Fizemos algumas alterações no blog.
A partir de agora vamos disponibilizar aos visitantes artigos de autoria deste editor, seja de produção individual ou em parceria. Os mesmos estarão disponíveis no campo Papers, à direita da página. Sempre que possível inseriremos novo material. Comentários sobre os textos são bem-vindos.
Também inserimos marcadores nas postagens, o que possibilita uma melhor filtragem por categorias.
Abraço a todos!

sábado, 27 de agosto de 2011

Martinho da Vila: Um boêmio muito família

Por Paulo Totti

"Menina moça vai passear/, vai passear, iá, iá./ Quer rapazinho pra acompanhar./.../ Tá namorando, já quer noivar, iá, iá." Com essa samba, sincopado e malemolente, ritmado por cavaquinho, palmas, surdo, caixa de fósforos e surpreendentes, inovadores, silêncios, Martinho José Ferreira quase se classificou para as finais do festival da canção da TV Record em 1967, numa disputa com "Ponteio", de Edu Lobo e Capinam (1º lugar), "Domingo no Parque", de Gilberto Gil (2º), "Roda Viva", de Chico Buarque (3º) e "Maria, Carnaval e Cinzas", de Luiz Carlos Paraná, interpretado por Roberto Carlos (4º).
Poucos recordam o fim da história da ingênua menina-moça cantada por um obscuro sargento do Exército, apenas conhecido nas rodas de samba dos subúrbios do Rio. Pouco resta também da música que entrou em seu lugar, "Beto Bom de Bola", de Sérgio Ricardo, uma homenagem a Garrincha. Desta, memoráveis são a vaia da plateia na noite final do concurso e a reação do injustiçado compositor, que quebrou o violão no palco e arremessou-o sobre o público. Inesquecível mesmo, e ícone de criatividade da imprensa sensacionalista da época, foi a maliciosa manchete no dia seguinte do "Notícias Populares", de São Paulo: "Violada em pleno auditório".
Martinho ainda usava bem lustrados sapatos. E não tinha o "da Vila" no sobrenome. "Nada a ver com a Vila Militar, não servi em Deodoro. Só estive por perto, em Realengo, na Escola de Instrução Especializada de Sargentos do Exército. Lá me formei técnico em contabilidade. O 'da Vila' é mesmo por causa da escola de samba de Vila Isabel."
Em música você pode ensinar tudo, menos o ritmo. O ritmo do samba, do jazz, está na ginga, na mente. É o chão e a semente
Hoje, ele só anda de sandálias, o dedão aparecendo, solto no mundo. Aos 73 anos de idade e 44 anos depois do festival, Martinho está bem de vida e de bem com a vida. Preterido no festival, esse compositor de recursos criativos vários - partido-alto, ciranda, frevo, samba de roda, capoeira, bossa nova, marchinha de Carnaval, lundu, calango, samba-enredo, toada, ritmos africanos - já teria o nome artístico na capa de seu primeiro LP ("Martinho da Vila", 1969), com sucessos como "Casa de Bamba" ("Na minha casa todo o mundo é bamba./ Todo mundo bebe,/ todo mundo samba..."), "Quem É do Mar" ("Quem quiser saber meu nome/ não precisa perguntar./ Sou Martinho lá da Vila,/ partideiro devagar") e "Pequeno Burguês", um quase hino da rebeldia estudantil que ocupava as ruas contra a ditadura: "Felicidade, passei no vestibular,/ mas a faculdade é particular./.../ Livros tão caros, tantas taxas pra pagar./ Meu dinheiro muito raro/ alguém teve que emprestar". E foi o segundo sambista a atingir a marca do milhão de discos vendidos com o CD "Tá Delícia, Tá Gostoso", 1995 - o primeiro foi Agepê, em 1984.
Martinho caiu no gosto de um público que não só consome, decora e aplaude as mil canções gravadas (48 álbuns) como admira sua simpatia e a interpretação maneira, única, inconfundível, de estilo apenas um pouco mais musical do que seu jeito normal de falar. Em verdade, à mesa de restaurante ou botequim, à fala de Martinho parece que só faltam as rimas para que se transforme em canto.
Ele já viajou o mundo a trabalho, tem casa "num lugar meio Miami" da Barra da Tijuca, escritório na Zona Sul, onde cuida dos direitos autorais e contratos para shows, e comprou os 40 hectares da fazenda onde nasceu, em Duas Barras, na região de Teresópolis e Nova Friburgo, a 170 quilômetros de Vila Isabel. É o Sítio do Cedro, que chama de "meu off-Rio". No centro da cidade de dez mil habitantes, ganhou até uma estátua. E, no dia 6, na Bienal do Livro, que será inaugurada na quinta-feira no Rio, vai lançar seu 11º livro: "Fantasias, Crenças e Crendices", pela editora Ciência Moderna. Ele entende dessas coisas, pois é o próprio exemplo de sincretismo do povo brasileiro. Filiado ao Partido Comunista do Brasil (PCdoB), expõe no peito um escapulário com a imagem do Sagrado Coração de Maria e cumpre todo o ritual da Semana Santa na igreja de Duas Barras, desde a Missa do Lava-Pés da quinta-feira, a Paixão e Adoração da Cruz, de sexta, à Ressurreição no domingo de Páscoa.
Reprodução/ReproduçãoNa capa de seu mais recente CD, Martinho da Vila no colo dos filhos músicos: Juliana( à esquerda), Maíra, Mart’nália, Analimar e Tunico
O compositor entra no restaurante com seus passos lentos, calça jeans e camiseta de gola careca sob a camisa social desabotoada. Os clientes o reconhecem, acenam, ele retribui com sorriso largo, "bom apetite!", e vai para os fundos do salão envidraçado, onde o repórter, o fotógrafo Léo Pinheiro e a assessora de imprensa Rejane Guerra o esperam. Dali se vê o sol esparramado sobre o verde da Quinta da Boa Vista, no bairro carioca de São Cristóvão. O prédio neoclássico, bem defronte à entrada do Jardim Zoológico, foi capela da residência de d. Pedro I. Martinho escolheu o restaurante porque é um lugar "sossegado, bonito e de boa comida", necessitando apenas que a prefeitura tenha pela relva que o circunda o cuidado que, segundo a lenda, o imperador dedicava às escravas e beatas com quem se encontrava na sacristia, onde hoje está a cozinha. "O dono, o Manuelzinho, um português boa gente, é meu amigo. Venho tanto aqui que acham que sou sócio."
Já é agosto, quase setembro, e a Escola de Samba Unidos de Vila Isabel prepara o desfile para o Carnaval de 2012. E esse é o assunto abre-alas deste "À Mesa com o Valor". O pessoal da escola pensou em homenagear Angola e Martinho deu a ideia de "fazer uma coisa baseada na história e na música de Angola em junção com a brasileira". O enredo já tem nome, "O Canto Livre de Angola, Samba lá e Sembo cá" - sembo é o ritmo de Angola. "Só dei algumas sugestões. O resto é por conta da carnavalesca muito competente Rosa Magalhães, do pesquisador Alex Varela e dos compositores. Não vou concorrer ao samba-enredo. Já fiz no ano passado o samba em homenagem ao centenário de Noel Rosa, agora vou dar um tempinho."
Martinho colabora de forma igualmente eficaz. Acaba de voltar de Angola, onde foi contar às autoridades de lá os planos da Vila Isabel. "Só fui abrir um pouco as portas. Eles não se comprometeram com o patrocínio, mas vão dar apoio. Agora a administração da escola pode continuar os contatos, procurar patrocínio com empresas brasileiras que atuam em Angola."
Há mais de 30 anos Martinho da Vila tem afinidades com o Movimento Popular para Libertação de Angola (MPLA), hoje no poder na antiga colônia portuguesa. No início foi solidariedade racial e política, hoje é relação pessoal suficiente para avalizar pedidos de colaboração como os da comunidade de Vila Isabel.
'Kizomba' para vencer hoje teria de ser modernizado. Antes, o desfile era mais espontâneo, mas pecava na organização
Em 1980, Martinho promoveu a apresentação de artistas angolanos no Rio e em São Paulo, num projeto que chamou de O Canto Livre de Angola. Um ano antes, à frente do projeto Kalunga, brasileiros é que foram a Angola. "Foi quase todo mundo." Chico Buarque, Djavan, Elba Ramalho, Quinteto Violado, Olivia e Francis Hime, Edu Lobo, Dona Ivone Lara. "Mais os que já descansaram: Dorival Caymmi, João Nogueira, João do Vale..." Um pouco disso estará na Sapucaí.
- Fevereiro está aí. Dá tempo?
- Sempre dá, né? Algumas escolas já escolheram seu samba. Na Vila as apresentações serão em setembro e a escolha, em outubro. Na noite do desfile vai estar tudo pronto, pode confiar.
Ricardo, o jovem maître do Restaurante Quinta da Boa Vista se aproxima. Martinho pede bolinhos de bacalhau para fazer lastro e se interessa pelo vinho. Branco ou tinto? Não há acordo na mesa e Martinho brinca: "Vamos ter um impasse aqui, a gente vai acabar não bebendo nada". O maître resolve arbitrar e traz um chardonnay argentino, Catena, 2009. "Não conheço o branco deles, mas se é Catena é de boa família", diz o repórter. Martinho concorda, com ironia: "Se é de boa família..."
- Por falar nisso, você é muito família. Já formou quatro. Tem oito filhos de quatro mulheres e sete netos. Cinco dos filhos estão na música, você os reuniu este ano no álbum "Lambendo a Cria". Consegue dar o nome de todos eles e das respectivas mães, sem hesitação?
Acervo pessoal/Acervo pessoalO sargento burocrata Martinho José Ferreira deixou a escrivaninha no Quartel-General para, como civil, comandar o Carnaval na Marquês de Sapucaí
O sorriso fica ainda mais aberto e o orgulhoso pai escala seu time de filhos músicos com as três "relações estáveis" que manteve na vida, antes de casar-se há 18 anos, papel passado e na igreja, com Clediomar Corrêa Liscano, uma gaúcha branca de São Borja, que ele chama de Cléo e também de Preta. O casamento rendeu a Martinho o título de cidadão honorário de São Borja e a Cléo, o de cidadã bibarrense (o gentílico Duas Barras).
Anália é mãe de Mart'nália, "que já está na carreira, toca violão, contrabaixo, canta, dança, tira som até de xícara de cafezinho", e de Analimar, cantora. Lícia Maria, a Russa, ex-presidente da Unidos de Vila Isabel, é mãe da cantora Juliana e de Tunico Ferreira, percussionista, compositor, cantor. E a bailarina Rita, ex-porta-bandeira do Salgueiro, é mãe de Maíra. Há um sexto músico, o mais velho, Martinho Antônio, filho de Anália, que já atuou como vocalista, mas preferiu a retaguarda e é diretor-artístico da gravadora Biscoito Fino. "Procurei que todos estudassem música. Maíra foi mais longe, é pianista clássica, e agora estreou como compositora e cantora de MPB".
- E o que você toca?
- Só instrumentos de percussão. Não sou músico de harmonia. Poderia ter estudado violão dois meses, aprender três acordes para fazer tipo e, que ninguém nos leia, falar que sou músico como muitos por aí. Dizem até que o Elvis Presley só sabia dois acordes.
Maíra não usa o sobrenome Ferreira, preferiu o da mãe, Freitas, mas Martinho está presente no CD da filha, num dueto em que interpretam "Disritmia" ("Eu quero ser exorcizado/ pela água benta desse olhar infindo./ Que bom é ser fotografado,/ mas pelas retinas desses olhos lindos./.../ Vem logo! Vem curar teu nego/ que chegou de porre lá da boemia!")
- Nessa faixa você parece até melhor, mais empenhado, do que quando gravou "Disritmia" pela primeira vez.
Guilherme Pinto/Extra/Agência O Globo/Guilherme Pinto/Extra/Agência O GloboCom Nathália Guimarães, rainha da bateria da Escola de Samba Unidos de Vila Isabel, 2009
- É a emoção de gravar com a filha, né? Gravamos na primeira passada. Maíra é um caso raro, um ET. Fez conservatório, faculdade de música na UFRJ, só tocava clássicos. De repente começou a cantar e compor música popular. Em geral, o pessoal do erudito não consegue tocar o popular. A música ritmada, para o erudito, é muito difícil. Ele aprende "tá-tá-tá" [cantarola]. Se tem que fazer "tá-tatá-tá" [batuca na mesa e cantarola com ritmo], aí ferrou. Em música você pode ensinar tudo a uma pessoa, menos o ritmo. O ritmo está no sangue, como eu digo no samba em homenagem a Ivone Lara que Mart'nália gravou: "Samba tá na ginga, tá na mente, é o chão e a semente". Maíra foi criada no samba e conhece os dois lados. Eu falo 'vamos improvisar?' Ela improvisa. Os pianistas clássicos dificilmente improvisam, têm um vício: dependência da partitura. Os grandes do jazz improvisam porque o ritmo está no DNA. O ritmo deles, até o do rock, veio da África, como o nosso... É bom isso, hein?
Martinho não se refere mais às raízes africanas, mas ao vinho. Ergue a taça. "Saúde."
O sétimo e o oitavo filho são com Preta Cléo, mãe carinhosa e rigorosa, a ponto de comprar um bafômetro para testar a volta de Preto - "agora não é apelido, é o nome mesmo" - das baladas. Preto tem 16 anos. E a filha, de 11, chama-se Alegria. Nenhum deles revela tendências para a música. "Tem que ir ao natural, não se deve forçar."
Na fazenda de café, arroz, hortifrútis e algumas cabeças de gado em que Martinho Ferreira nasceu, em Duas Barras, seu pai, Josué, era meeiro. Trabalhava em terra alheia e o dono da terra ficava com metade da produção. Como o fazendeiro adiantava o dinheiro para ferramentas, adubos, sementes, no fim da safra sempre faltava algum para pagar o "financiamento". Honrava então a dívida com a produção, a um preço que o fazendeiro estipulava. Mas seu Josué sabia ler e escrever, ajudava os fazendeiros nos cadernos de rudimentar contabilidade e ainda alfabetizava jovens e adultos. A região entrou em crise - erradicação de cafezais, queda internacional dos preços -, Josué e a mulher, Teresa, juntaram-se aos vizinhos no êxodo para o Rio. Martinho tinha quatro anos, era o do meio entre seis irmãos.
"Está gostando, senhor?", pergunta o maître. "O vinho branco é bom demais, mas acabou. Vamos num tintozinho agora?"
Divulgação/DivulgaçãoEstátua de Martinho da Vila em Duas Barras, onde comprou a fazenda em que nasceu, filho de um meeiro com o apelido de Seu Letrado
Logo está sobre a mesa um encorpado português tinto Cartuxa, de Évora, para acompanhar as postas de bacalhau assado ao forno dentro de azeite extravirgem, batatas coradas, cebola, pimentão, azeitonas e brócolis. Duas aromáticas, gratinadas e generosas porções, suficientes para quatro.
No Rio, só as luzes da cidade vistas do alto da Serra dos Pretos Forros, na chamada Boca do Mato, entre os bairros de Lins de Vasconcelos e Méier, eram a vantagem sobre a vida pobre de Duas Barras. No barraco de zinco onde foram morar também não havia luz elétrica, a água era buscada lá embaixo na bica pública, e para cada dez casas havia uma única "casinha", o lugar onde as pessoas satisfaziam suas necessidades. A chave da casinha ficava na mão de um morador, que só a entregava se o necessitado chegasse já com um balde d'água.
Até os dez anos, Martinho não foi à escola. A ler e contar ele aprendeu em casa com o pai, à luz de velas. Josué trabalhou em vários lugares e Martinho se lembra da Fundição Americana e da fábrica de Papel Engenho Novo, em cujos caminhões ele viajava para buscar a celulose. Foi seu último emprego. Um dia, saiu para trabalhar e não voltou. Suicidou-se.
- Depressão?
- Ele perdeu a guerra... Em Duas Barras, mesmo sendo meeiro, era considerado; as pessoas chamavam ele de Seu Letrado. Veio para o Rio para tentar a vida, não se deu bem. Mas deixou uma carta com instruções para a minha mãe tocar a vida.
Dona Teresa, "analfabeta, mas sábia, uma culta primitiva", tratou logo de pôr Martinho em escola regular. Mas não havia vagas em colégio público e o garoto foi estudar com dona Glória, um típico exemplar daqueles tempos de preconceito e obscurantismo. Professora formada, Glória não conseguia vaga na rede escolar porque, além de muito negra, tinha "uns traços incomuns, olhos esbugalhados; os pais não queriam que seus filhos estudassem com ela". Um político da época ajudou e Glória criou uma escola só para favelados. Ensinava, "e muito bem", apenas português e matemática, pois sabia que os meninos não iriam mesmo continuar os estudos e era o de que precisavam para já começar a trabalhar. Seu curso era de dois anos.
Leo Pinheiro/Valor/Leo Pinheiro/ValorMartinho da Vila no restaurante de Manuelzinho: “Venho tanto aqui que pensam que sou sócio”
História, geografia, desenho, ciências, "moral e cívica" fizeram falta a Martinho quando finalmente conseguiu vaga em escola pública. Já tinha 12 anos, era o mais alto dos alunos do colégio Rio Grande do Sul no Engenho de Dentro. Mas só o aceitaram no segundo ano primário. "Ganhei concursos de português e matemática, ajudava os colegas, e até professoras tiravam dúvidas comigo, mas no resto boiava". Foi terminar o primário aos 15 anos. O garoto ao mesmo tempo trabalhava em uma casa de família - "fazia mandados" -, onde dona Alzira e dona Ida, as patroas, perguntaram o que queria ser. "Mecânico", respondi. "Eu me amarrava no macacão, na caixa de ferramentas, o cara deitado debaixo do carro, cheio de graxa, e sabendo devolver vida ao motor que tinha morrido." "Então tem que fazer um curso profissionalizante", disseram as patroas.
E assim Martinho entrou para o Senai. Mas não como mecânico de automóveis. Tirou 10 nas provas de admissão e lhe disseram que poderia tentar um curso melhor, o de químico industrial, a que só tinham acesso os candidatos com nota superior a 9 (mecânicos, de 8 a 9). "Os amigos disseram 'químico é mais valorizado, é bonito, tem jaleco'. Eu falei 'opa, já gostei'." O diploma do Senai, que ele perdeu - "tantas mudanças de casa, troca de mulher..." -, dizia: "Martinho José Ferreira, auxiliar de químico industrial, preparador de óleos, graxas, ceras, perfumes e sabões".
Nessa época, já era sambista promissor, estava na ala dos compositores da hoje desaparecida Escola de Samba Aprendizes da Boca do Mato. Aos 13 anos, compôs "Piquenique", um "samba de terreiro". Aos 15, a escola desfilou no segundo grupo com "Carlos Gomes" e, aos 19, com "Machado de Assis", de sua autoria. "Não me achava um cantor, cantores tinham voz poderosa, Orlando Silva, Francisco Alves, Nelson Gonçalves, quando cantavam a veia do pescoço crescia." Só em 1964 foi convidado para a ala de compositores de Vila Isabel, então no terceiro grupo. Seu primeiro samba-enredo na Vila foi "Carnaval das Ilusões", 1967, em parceria com Gemeu. A escola, já promovida para o primeiro grupo, ficou em quarto lugar.
A consagração, porém, foi em 1988, centenário da abolição da escravatura, com um enredo antológico e vencedor: "Kizomba, Festa da Raça". [Samba de Luiz Carlos da Vila, Jonas Rodrigues e Rodolfo de Sousa]. "'Kizomba', para vencer hoje, teria de ser modernizado. Antes, o desfile podia ser mais espontâneo, mas era desorganizado. Hoje o que derruba uma escola é a desorganização, ganha quem errar menos. Mas, quando a escola ganha, o bairro fica em festa, todo mundo se considera dono da escola."
Leo Pinheiro/Valor/Leo Pinheiro/ValorAo sol da Quinta da Boa Vista, o comunista expõe o escapulário de Nossa Senhora: sincretismo
Egressos do Senai com boas notas tinham emprego garantido e, terminado o curso, Martinho foi mandado para o Laboratório Químico e Farmacêutico do Exército. Mas havia um problema. Precisava de Certificado de Reservista e ele não tinha. As ex-patroas e madrinhas eram amigas de alguém influente no Exército e tudo se resolveu. "Houve apadrinhamento", reconhece Martinho. "No quartel me perguntavam: 'Como é que você veio parar aqui, neguinho?' Fui admitido em algo que chamavam de contingente. Passei três meses no Segundo Batalhão de Carros de Combate e fui para o laboratório. Concluído meu tempo de Exército, 10, 12 meses, seria contratado como funcionário público civil. Mas vi que os cabos ganhavam mais que funcionários com 15 anos de serviço. Por isso engajei. Fiz curso de cabo, de sargento especialista, virei contador. Fui trabalhar no Quartel-General, numa escrivaninha. Lá por 1968, pedi baixa. Essa é minha história militar."
- E como você chegou ao festival da Record?
- Inscrevi a música e esqueci. Morava em Pilares e o único telefone da rua ficava a umas cinco quadras. Um dia, o dono do telefone me disse: "Ligaram da TV Rio e querem que você vá lá". Fui lá e o cara disse: "Bicho, foi um trabalhão te encontrar. Você está concorrendo no festival, sua música foi aceita". E eu: "Ah, legal". "Que legal, pô? Você não vai sair pulando de alegria?" Eu não sabia que o festival era tão importante. A TV Rio era a sucursal da Record no Rio. "Você precisa ir para São Paulo ontem", disseram. "Tá faltando só um cara lá e você é o cara." Eu era sargento. Falei: "Pô, não posso ir..." "Dá um jeito." Falei com o pessoal do ministério, e me autorizaram a ir para São Paulo. Lá o porteiro não queria me deixar entrar: "Todo mundo que devia chegar já chegou, você não leu no jornal? Tá todo mundo dando entrevista adoidado". Enfim, entrei. O problema agora era quem ia cantar a música. A Record escolhia os cantores. Como era um samba, indicaram o Jamelão. Mas ele era estrela das grandes, cantor com orquestra, cantava músicas do Lupicínio. Samba de repicado, partido-alto, não era com ele. Aí eles falaram "o Jamelão diz que tem que conversar com você para mudar o andamento e outras coisas". Eu falei: "Ah, isso não". Faltavam 15 dias para ir ao ar e tudo ao vivo. Aí fui cantar. O Jamelão foi junto, não se acertava com a música e não sabia a letra. A primeira [estrofe] cantei com ele. Depois me virei sozinho... Era a última etapa de classificação, o júri se dividiu e me disseram que perdi por pouco. Até então não tinha gravado nada nem tinha gravadora.
E era o verdadeiro começo, pois a partir daí a história desse cantor e compositor é bastante conhecida. Devagar, devagarinho, Martinho chegou lá.
O almoço começou às 14h15 e às 17h30 o repórter dispensa a sobremesa, pede café e a conta. Martinho, um chope. O garçom traz um "black", chope escuro em copo pequeno em forma taça. E a surpresa: "Seu Manuelzinho mandou dizer que é tudo cortesia da casa". Não adiantou protestar. E o leitor, infelizmente, fica privado do atrativo deste espaço: o total da conta e o detalhamento dos preços do que se comeu e bebeu.

Fonte: Valor

domingo, 31 de julho de 2011

Prebisch e o continente

Foi também no ano da crise que chegou às livrarias dos EUA e do Canadá a biografia de Raúl Prebisch (1901-1986), o economista argentino que, para muitos, é o "Keynes latino-americano". Escrita por Edgar Dosman, da Universidade de York, no Canadá, "Raúl Prebisch: a Construção da América Latina e do Terceiro Mundo" tem publicação prevista no Brasil para o dia 15, em parceria do Centro Internacional Celso Furtado (CICF) com a editora Contraponto.
"O fim de 2008 foi o momento perfeito para sair o livro, porque assinala o começo de uma crise que pode vir a ser um colapso global", diz o autor. O lançamento permite resgatar a memória do pai da teoria estruturalista do desenvolvimento econômico. Prebisch, segundo Dosman, foi o primeiro economista a estender a teoria ao mundo em desenvolvimento e a enxergar a América Latina como uma entidade à parte. A tradução prática de seu pensamento foi a liderança da Comissão Econômica para a América Latina (Cepal) e da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento). Grandes economistas brasileiros, como Celso Furtado (1920-2004) e Maria da Conceição Tavares, beberam na fonte de Prebisch.
O caos econômico dos anos 1930 desnudou, para o economista, a fraqueza da teoria hegemônica de comércio internacional
"Acredito que sei o que Prebisch recomendaria para o Brasil neste momento de boom de commodities e risco de desindustrialização", diz Dosman. Ao contrário do que se possa imaginar de um economista que preconizou o protecionismo e intervenção estatal para industrializar países periféricos, substituindo importações de manufaturados por produção local, Prebisch apoiava um setor primário forte. A explosão de commodities pode ser usada a favor do Brasil, se o país não se descuidar de ampliar as condições de produzir com alto valor agregado.
"Uma das vantagens da idade é ter acompanhado o ir e vir dos ciclos econômicos", comenta o autor. O próprio Prebisch presenciou uma alta acentuada de preços de produtos agrários na década de 20. "Levando em consideração as mudanças de humor do mercado de commodities, a pergunta passa a ser: o que é preciso fazer para se manter como potência industrial?"
Para Dosman, que vem ao Brasil no mês que vem para uma série de seminários organizados pelo CICF, Prebisch diria aos governos latino-americanos que encarassem o boom das commodities como temporário. A recomendação seria administrar a situação para evitar a "doença holandesa", ou seja, desindustrialização por dependência de um único produto exportado. "Não se pode esquecer que os países só têm sucesso se contarem com uma infraestrutura física, intelectual e produtiva que garanta o desenvolvimento de longo prazo", alerta Dosman.
Como Keynes, Prebisch desenvolveu suas teorias a partir da experiência traumática da Grande Depressão, que atingiu a economia argentina com uma violência particularmente atroz. O país era, até então, um dos mais prósperos do mundo, com sua economia assentada sobre a exportação de carne bovina e trigo para a Europa. A implosão do comércio mundial carregou consigo o país platino, que atravessou o violento período conhecido como "década infame".
Fabiano Cerchiari/Valor

Para Simão Davi Silber, da USP, a tese de Prebisch é falha porque se baseia no pior período da história do comércio internacional


Prebisch, nascido em Tucumán, filho de um imigrante alemão com uma descendente de aristocratas coloniais, era então um economista ortodoxo e diretor-geral do Banco Central de seu país, que também fundou. Atravessou no BC, onde trabalhou de 1930 a 1945, períodos turbulentos da crise e presenciou a ascensão do populismo de Juan Domingo Perón (1895-1974), que se tornaria seu desafeto. A magnitude do caos econômico dos anos 1930 desnudou, aos olhos do economista, as fraquezas práticas da teoria hegemônica de comércio internacional, fundada sobre o conceito de vantagens comparativas de David Ricardo (1772-1823). Para o economista inglês, os países devem se especializar na produção daquilo em que têm maior eficiência, para ampliar o comércio e gerar maior riqueza.
Uma das razões encontradas por Prebisch para explicar que os benefícios da vantagem comparativa não fossem repassados aos países periféricos, segundo o economista Nelson Marconi, da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e organizador do seminário paulistano sobre o argentino, foi a escassez de mão de obra nas sociedades industriais. Em consequência, os salários eram mais altos, porque os empresários tinham de investir em qualificação dos operários. "A vantagem comparativa chegava ao bolso do operário europeu, mas não ao camponês latino-americano", diz Marconi. Na crise, Prebisch observou que os preços do trigo e da carne argentinos despencaram com violência maior do que os de manufaturados. Os resultados foram divulgados na ONU (Organização das Nações Unidas) em 1949, com o texto "O Desenvolvimento Econômico da América Latina e Alguns de Seus Principais Problemas". Ao mesmo tempo, o economista alemão Hans Singer (1910-2006) chegava a conclusões semelhantes, de tal maneira que a teoria ficou conhecida como tese Prebisch-Singer.
O rebento da observação de Prebisch seria a teoria estruturalista do desenvolvimento econômico, que marca a ruptura do argentino com a ortodoxia. "O desenvolvimentismo da Cepal foi uma teoria muito importante para sua época", assinala o economista da FGV Luiz Carlos Bresser-Pereira, ex-ministro da Fazenda. "Foi a base de todo o desenvolvimento no Brasil, no México, no Chile e, em menor escala, na Argentina." Ironicamente, no país de Perón, Prebisch era persona non grata. Seus dois breves retornos à terra natal, como conselheiro dos presidentes Pedro Aramburu, em 1955, e Raúl Alfonsín, em 1983, foram desastrosos. "Ninguém queria escutar seus conselhos. Ele era associado ao 'antigo regime', período em que presidiu o Banco Central", diz Dosman.
"A vantagem comparativa nessa relação de comércio chegava ao bolso do operário europeu, mas não ao camponês latino-americano"
O ostracismo de Prebisch contrasta com o renome de que goza o outro grande economista heterodoxo do continente, o brasileiro Celso Furtado. O autor do monumental "Formação Econômica do Brasil" foi um prolífico colaborador de Prebisch na Cepal, além de amigo do argentino. "Prebisch deu o pontapé inicial", segundo Marconi. "Furtado ampliou a teoria e introduziu a questão da desigualdade de renda, que faltava."
Quando se conheceram, no Chile, o brasileiro era um jovem economista promissor. Prebisch, segundo Dosman, logo reconheceu nele um colega brilhante. "Era uma admiração mútua. Prebisch admirava a integridade pessoal de Furtado." A colaboração durou décadas, mas houve discordâncias, que chegaram a um breve rompimento em 1957. "Ambos tinham vontades fortes... eram 'machos alfa'", brinca o biógrafo.
Uma explicação para os destinos divergentes reside no acesso aos textos de ambos. Enquanto Furtado legou uma bibliografia ainda amplamente estudada, Prebisch escreveu apenas profissionalmente. Como diz seu biógrafo, "ele assinava como chefe de pesquisas, na Cepal e na Unctad. Seus textos individuais, para apresentação na ONU, ficaram indisponíveis". O projeto de publicar os manuscritos e correspondências do economista argentino avança lentamente.
"O estruturalismo entende que o processo de desenvolvimento implica uma mudança estrutural na composição da produção", diz Marconi. A necessidade de industrializar, ponto fundamental das ideias de Prebisch, é parte de um estímulo generalizado à demanda, por intervenção estatal ou investimento externo, à medida que uma economia deixa de ser primária. No horizonte situa-se um "ponto de maturidade", com consumo de massa e uma demanda de perfil mais sofisticado, em que a população exige serviços públicos, educação, saúde, lazer.
Luis Ushirobira/Valor

O ex-ministro da Fazenda Luiz Carlos Bresser-Pereira defende um desenvolvimentismo inspirado nas ideias de economistas como Raúl Prebisch


Segundo Bresser-Pereira, o desenvolvimentismo de Prebisch, Furtado e outros autores tem o mérito de reconhecer na economia um pensamento social e, portanto, histórico, em oposição à teoria neoclássica, que se pretende a-histórica. À exceção do pioneiro Reino Unido, aponta Bresser-Pereira, "todos os países que se industrializaram no século XIX protegeram a produção local": França, EUA, Alemanha, Japão.
Ao fim da Grande Depressão dos anos 1930, os governos latino-americanos tomaram interesse pelas teses da Cepal, que prometiam desenvolvimento e proteção contra novas recessões. A substituição de importações, ponto inaugural da doutrina, foi buscada no Brasil, no México, no Chile e em outros países. Nas décadas seguintes, o crescimento do continente foi um dos mais fortes do mundo e a estrutura econômica e social na região foi radicalmente transformada. As cidades cresceram com as fábricas. Mas ao fim da década de 1970, o quadro era outro: inflação, estagnação, crises políticas e ditaduras.
O desenvolvimentismo e as teses da Cepal foram relegadas a um plano secundário a partir da década seguinte, quando as teorias neoclássicas voltaram ao centro dos debates e o Consenso de Washington tomou forma. O próprio Raúl Prebisch foi esquecido e esquecido morreu, no Chile, em 1986. "A hipótese de Prebisch e Singer era muito ruim. Ela se baseava em dados apenas do período mais terrível da história do mercado mundial, que foi a Grande Depressão", argumenta o economista Simão Davi Silber, da Universidade de São Paulo (USP). Segundo Silber, as pesquisas empíricas revelam o oposto daquilo que diagnosticou o economista argentino: quem exporta commodities está em situação melhor do que o exportador de produtos industriais. "A história não corrobora a hipótese. A melhor maneira de verificá-lo é comparar o desempenho da América Latina com o Sudeste Asiático, onde a substituição de importações foi abandonada tão logo perceberam o erro."
O confronto entre latino-americanos e asiáticos em matéria de desenvolvimento também atrai os defensores do estruturalismo. Bresser-Pereira lembra que a substituição de importações é uma "pequena fase inicial de industrialização", cujo substrato é, nas palavras de Nelson Marconi, "um forte investimento na qualificação da mão de obra", com vista a galgar as etapas de desenvolvimento e reestruturar o sistema econômico. Um erro do Brasil, lamenta Marconi, foi não investir no capital humano. O modelo de industrialização que importou a matriz tecnológica foi concentrador de renda e não colaborou para atingir fases mais avançadas de desenvolvimento.
Agência Estado

Raúl Prebisch


"A substituição de importações funcionou bem até os anos 1960", diz Bresser-Pereira. "Os asiáticos começaram assim e saíram rápido." Embora não se baseassem no pensamento de Raúl Prebisch, os economistas e burocratas daquele continente são pragmáticos, segundo Bresser-Pereira, e "olham para como a economia funciona de verdade". Países como a China e a Índia são encarados como exemplos de sucesso de políticas desenvolvimentistas.
Bresser-Pereira conclui que o erro latino-americano foi demorar a sair da etapa de substituição de importações. As raízes dessa demora podem ser políticas, já que as massas recém-incorporadas à economia urbana e industrial se tornaram um eleitorado atraente para os líderes do continente. "Por trás das ideias de Prebisch está um ativismo governamental pronunciado, daí o fato de ter caído no gosto do nacional-desenvolvimentismo latino-americano", afirma Simão Silber, ressaltando o caráter estatista da teoria heterodoxa da Cepal.
O renascimento do interesse pelo keynesianismo e por teorias centradas no desenvolvimento, a partir da crise de 2008, se faz acompanhar de um olhar mais benevolente para a atuação do Estado. "A estratégia do novo desenvolvimentismo é crescer com estabilidade, mas defendendo um Estado mais participativo", diz Bresser-Pereira. Nesse modelo, o Estado deixa de ser produtor, dono de empresas, e se torna indutor de investimentos privados. "O estágio de desenvolvimento é outro. Não precisamos mais fazer a revolução industrial e capitalista", diz. "Já existe uma classe de empresários capazes de investir."
Marconi lamenta que o Brasil tenha passado tantas décadas investindo na modernização da estrutura sem modernizar também a formação da mão de obra. "Só agora esse problema está sendo atacado no Brasil." O desenvolvimentismo de hoje, segundo Marconi, é a corrente que chama a atenção para a necessidade de agregar valor à produção, seja no setor industrial ou nos serviços mais dinâmicos.


Fonte: Valor - Eu & Fim de semana.

sábado, 16 de julho de 2011

Caminho das pedras para ingresso no doutorado*

Como estamos em período onde vários editais de seleção ao doutorado em economia estão abertos (e também mestrado via Anpec), postamos a seguir algumas dicas que podem ajudar no seu processo seletivo e evitar frustrações.

Para seleção ao mestrado, as formas de seleção são mais comuns. Prevalece a seleção via prova da Anpec, mas alguns centros ainda têm a seleção interna, que geralmente passa por prova e análise do currículo e do histórico escolar e, em alguns casos, do projeto de pesquisa. Outra coisa é que a grade curricular geral entre os centros costuma ser mais homogênea do que no doutorado, então não tem tanto mistério na hora de escolher um centro.

No caso do doutorado, outras variáveis entram na equação de seleção.

1. Um ponto inicial que o candidato deve observar com atenção é em relação às correntes (econômicas) que prevalecem em cada centro. Pode ser muito bom ver seu nome na lista de aprovação de um centro renomado, mas pode ser frustrante se a corrente predominante no centro ir de encontro ao que você tem em mente (sentirá isso logo nas disciplinas). No economês, atentar se o centro é ortodoxo demais para suas pretensões mais heterodoxas, e vice-versa.

2. Mapeando os centros de seu grado em termos do que foi tratado anteriormente, é fundamental observar o quadro de docentes e suas especialidades. Dependendo da especificidade de seu projeto de pesquisa, pode ter dificuldade em termos de orientação, mesmo o programa oferecendo as disciplinas que você pretende cursar.

3. Sobre a forma de seleção, alguns programas fazem uso de todos os instrumentos: provas, análise de currículo e histórico, entrevista e análise do projeto de pesquisa. Outros processos seletivos dispensam as provas, outros dispensam entrevistas... Enfim, os critérios são mais diversificados que no mestrado, o que exige mais do candidato que resolva aplicar para mais de um centro. Consulte os centros no site da Anpec.

4. Alguns candidatos se perguntam qual o motivo de seu ótimo projeto não ter sido aceito, mesmo estando dentro das linhas de pesquisa disponíveis no programa (isso desanima qualquer um!). Em conversa com alguns professores, a explicação disso é que mesmo sendo um bom projeto e com pouca concorrência para a linha de pesquisa que foi submetido, a aceitação do mesmo depende da disponibilidade de professor para orientar. Explicando melhor: há professor no quadro para lhe orientar, porém o mesmo pode estar atarefado com outras coisas e não aprova o projeto por indisponibilidade de espaço na agenda para orientação. Geralmente professor que está coordenando vários projetos ao mesmo tempo; professor cedido para algum órgão fora da universidade ou que tem suas agendas de aula e pesquisa divididas com a direção da SEP, Anpec etc. Assim, é interessante tentar verificar se o seu provável orientador está com disponibilidade. Esse ponto não é tão importante, mas ajuda a explicar o motivo de um bom projeto ser recusado.

5. Por fim, algumas ações estratégicas. i) Procure mapear e inserir no seu projeto algumas bibliografias dos professores do centro de seu interesse, nada forçado (por favor!), apenas se tiver relevância para o projeto (isso será natural, caso você esteja interado das produções em sua área de interesse). ii) Submeter o mesmo projeto para vários centros diminui o trabalho do candidato, mas recomenda-se fazer pequenas alterações para deixar o projeto mais compatível com cada centro, mas essas pequenas alterações não devem interferir da ideia central do projeto. iii) Antes de submeter o projeto, solicite a um amigo da área ou professor fazer uma leitura crítica do mesmo. Correções e sugestões de bibliografias podem surgir. iv) Nos centros onde há aplicação de provas na seleção, procure conseguir as provas anteriores, isso lhe dará uma ideia do tipo de questão que é aplicada.

Se você tem outras dicas, compartilhe conosco no campo de comentários.

Confira no EconDados  os programas com editais abertos e ferramentas interessantes.

Boa sorte!

(*) Focado em Economia, mas as dicas mais genéricas podem ser de utilidade para qualquer área.

sábado, 9 de julho de 2011

O orgulho de fabricar

Por Diego Viana

O economista americano Werner Baer desembarcou no Rio pela primeira vez em meados da década de 1960, para realizar pesquisas na Fundação Getúlio Vargas. Nascido na Alemanha e criado em Nova York, o economista considera-se, desde então, "carioca, pelo menos em parte". Brasilianista, titular da cadeira Jorge Paulo Lemann da Universidade de Illinois e ex-professor do presidente do Banco Central, Alexandre Tombini, Baer tornou-se um dos principais especialistas acadêmicos em economia brasileira, autor de uma obra intitulada, bem a propósito, "A Economia Brasileira", que chegou em 2008 à sua sexta edição.
O livro, enriquecido com copiosas estatísticas e tabelas históricas, aprofunda o tema da industrialização do país, da era Vargas à redemocratização, analisa a crise da dívida dos anos 80 e se estende pelo período que recebeu o nome de "neoliberal", inaugurado na era Fernando Collor e posto em questão no governo Lula. A nova fase da economia brasileira, a ser incorporada às próximas edições da obra, segue em aberto. "Vejo uma possibilidade de desindustrialização, por causa da valorização do câmbio. Será que esse é um perigo verdadeiro? É uma situação temporária? É uma tendência de longo prazo?", alerta o economista. Baer preconiza um olhar sobre as tendências para o país que ultrapasse as fronteiras da economia e enverede pela história, a política nacional e a geopolítica.
O economista ilustra seu pensamento lembrando que a década de 1960 foi o coração do período de industrialização acelerada no país. "Um elemento que não coloquei no livro, mas chamou minha atenção, era o orgulho visível da população com a indústria que crescia", relata. "Os brasileiros diziam: 'Está vendo aquele caminhão Mercedes? Fomos nós que o fizemos. Não o importamos. Fabricamos aqui'." Para Baer, o elemento psicológico manifestado nesse orgulho é fundamental. "É o orgulho de não ser simplesmente um povo que colhe café e corta cana-de-açúcar. O povo se reconhece capaz de produzir uma coisa sofisticada." Esse orgulho não feneceu, mesmo com tudo que se passou na economia brasileira desde aquela época. "Da minha cidade, Champagne, o serviço aéreo até Chicago é feito inteiramente com aviões da Embraer. Os brasileiros que trabalham lá também se orgulham de dizer: 'Este é nosso avião'."
O fator psicológico se mistura com as projeções geopolíticas para definir a dimensão do risco da valorização cambial. Se for confirmada uma tendência à desindustrialização, pergunta Baer, "qual vai ser a relação do Brasil com os países avançados tradicionais? E qual é o papel do novo centro, ou seja, da China"? Ele evoca a teoria da dependência, desenvolvida pelos economistas da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), como o argentino Raúl Prebisch e o brasileiro Celso Furtado, para ilustrar como a história se repete, ainda que sob outra forma. "A relação centro-periferia está se repetindo na África. Os chineses investem lá para extrair matérias-primas para a indústria. Se há uma desindustrialização e o Brasil voltar a ser dependente de exportações de matérias-primas, será que o país está retrocedendo?"
A mensagem de alerta do economista ao país que estuda pode ser entendida como um antídoto para a euforia em relação a seu próprio futuro de curto prazo. Baer cita o célebre título do autor austríaco Stefan Zweig: "Brasil, País do Futuro", um futuro que muitos brasileiros acreditam já ter chegado. O brasilianista discorda: "Está próximo, bastante próximo, mas ainda não chegou".
Contra a euforia, Baer oferece provocações: a desindustrialização é uma ameaça que paira, a taxa de investimento é muito baixa para um país que pretende crescer, os gastos públicos não são eficientes e os investimentos, em particular o PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), avançam com lentidão exasperante.
Mas a crítica mais forte recai sobre a relação que o país mantém com a educação e a pesquisa. "Um dos motivos para a morosidade do investimento no Brasil é a baixa qualidade da formação, principalmente de engenheiros. O sistema educacional ainda não está aproveitando as riquezas humanas que existem aqui." Talvez como consequência do sistema de ensino deficitário, o poder de inovar e criar novos produtos é limitado, já que "muitas empresas brasileiras não fazem bastante esforço de pesquisa. Não querem empregar um químico, por exemplo, que passa anos no laboratório antes de produzir algo lucrativo. Se precisam de tecnologia, preferem comprá-la pronta no exterior".
O legado de Werner Baer no Brasil vai muito além do livro que resume a economia do país. Ele participou da criação da Fipe-USP (Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas da Universidade de São Paulo) e deixou sua marca em instituições como IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), Fundação Getúlio Vargas, Pontifícia Universidade Católica e Ipea (Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas). Quando vem ao Brasil, instala-se no Rio, não mais na FGV da praia de Botafogo, mas na PUC, na Gávea, por afinidade teórica.
A proximidade acadêmica com o país lhe dá liberdade para as críticas mesmo ao Banco Central comandado pelo ex-aluno Alexandre Tombini, "um grande amigo e um economista excepcionalmente brilhante, muito competente". O problema está nas metas de inflação, que, para Baer, deixam de lado prioridades mais urgentes para o Brasil, como a redução da pobreza e da desigualdade. "O sistema de metas de inflação é simplista. Traz implícita a crença de que, se podemos alcançar uma sociedade em que a inflação desaparece, todos os outros problemas desaparecem também: a baixa taxa de investimento, a baixa taxa de poupança, a pobreza, a desigualdade... É como se tudo pudesse se resolver automaticamente se a inflação estiver abaixo de 6%."
A memória da hiperinflação é indicada como explicação para a ênfase no nível de preços e nos aumentos da taxa de juros. "Uma volta da inflação das décadas de 1970 e 1980 seria interpretada como um fracasso total da política econômica. Eu entendo o BC. A tarefa deles é eliminar qualquer ameaça à estabilidade da moeda e ao poder de compra. Mas como sou acadêmico, não membro do FMI (Fundo Monetário Internacional), nem do Banco Central, posso fazer críticas", argumenta Baer, rindo.
Outro ex-aluno célebre de Baer é o presidente do Equador, Rafael Correa, indicado como mais um representante da guinada para a esquerda na América Latina do início do século XXI, ao lado de Lula, Hugo Chávez, Evo Morales e José Mujica. Mas o rótulo sobre o ex-aluno parece injusto ao economista americano. "A maneira como a imprensa internacional tem apresentado Correa não é muito justa. Ele acredita no mercado! Estatizou algumas empresas-chave internacionais, porque se comportaram muito mal do ponto de vista do ambiente na Amazônia. Mas as empresas privadas vão muito bem no Equador, sobretudo as exportadoras. Correa respeita a propriedade privada, é um homem muito religioso."

Fonte: Valor - Eu & fim de semana.

sábado, 25 de junho de 2011

Empobrecimento intelectual no FMI


Alex Ribeiro
Um conjunto de documentos recém-publicados por uma auditoria independente ajuda a entender por que o Fundo Monetário Internacional (FMI) falhou na sua missão de alertar com antecedência para os desequilíbrios que levaram à recente crise mundial.
O problema não é apenas que o FMI defendeu políticas inadequadas, como a desregulamentação financeira indiscriminada e a abertura das contas de capitais a qualquer custo, mas principalmente a falta de capacidade para refletir sobre realidades econômicas que fogem do manual.
O chamado Escritório de Avaliação Independente (IEO, na sigla e inglês) analisou 6,5 mil trabalhos de pesquisa econômica publicados pelo FMI nos últimos dez anos, quando se acumulou boa parte dos problemas que levaram à crise.
Estudos se alinham a pensamento dominante no Fundo
Economistas de fora do organismo foram convidados a examinar a consistência dessa massa intelectual. Também foi feita uma pesquisa de opinião para saber como a qualidade e a utilidade dos trabalhos são avaliados pelos países-membros do FMI e para entender um pouco do processo de produção dentro do próprio corpo técnico do organismo.
O dado mais preocupante é que 62% dos economistas do Fundo afirmaram que se sentem pressionados a alinhar as conclusões de suas pesquisas econômicas ao pensamento dominante no FMI. Outros 31% dizem que "raramente" se sentem instados a moldar o pensamento do Fundo. Apenas 7% disseram que nunca se sentem pressionados.
É claro que um organismo como o FMI deve ter uma uniformidade mínima de pensamento para garantir coerência às suas ações. Mas a falta de autonomia intelectual empobrece a investigação econômica e dificulta identificar os riscos e perigos que a multidão não enxerga.
A pesquisa econômica é uma das atividades mais nobres dentro do FMI, consumindo cerca de US$ 100 milhões por ano, ou 10% do orçamento da casa. Relatórios como o Panorama Econômico Mundial são ferramentas muito poderosas para influenciar e mudar políticas adotadas em países-membros. O cardápio inclui também estudos feitos para os países e trabalhos de discussão, entre outros.
"Se os pesquisadores são frequentemente obrigados -- ou se sentem obrigados -- a aderir a certas noções preconcebidas, a pesquisa do Fundo será menos relevante para os formuladores de políticas públicas", afirma Paulo Nogueira Batista Júnior, diretor-executivo para o Brasil e outros oito países da região no FMI, esclarecendo falar em nome pessoal, e não do organismo.
Em janeiro deste ano, uma outra auditoria independente conduzida pelo próprio IOE havia detectado que a falta de arejamento no pensamento do FMI contribuiu para impedir que o organismo avisasse em alto e bom tom que o comportamento perigoso dos países avançados levaria a uma crise.
Nesse documento, o IEO disse que o corpo técnico do FMI sofre de uma mazela conhecida como "pensamento de grupo". Ou seja, os economistas da casa formam uma panelinha homogênea e preferem o conforto de repetir o pensamento médio dos colegas a desafiá-los com raciocínios originais e independentes.
Um terceiro documento divulgado há pouco menos de um mês, esse preparado por um grupo dentro do próprio FMI, mostra que falta diversidade entre o corpo técnico do organismo. Hoje, 60% dos cargos de chefia no Fundo são ocupados por profissionais de países anglo-saxões. Nada menos de 63% dos economistas obtiveram doutorado em universidades americanas. O FMI recruta seus novos quadros em apenas 15 universidades americanas, além de outras 35 no resto do mundo.
Não há dúvidas que o FMI emprega alguns dos cérebros mais competentes do mundo, formandos em universidades como Stanford, Harvard e Princeton. Boa parte das peças produzidas pelo FMI são consideradas de altíssima qualidade. Segundo a pesquisa de opinião feita pelo IEO, autoridades econômicas e acadêmicos de praticamente todos os países do mundo dizem ler com muita atenção o Panorama Econômico Mundial. Cerca de um terço dos trabalhos de discussão do FMI termina publicado em jornais acadêmicos.
Mas a avaliação geral é que falta objetividade científica. Entre as grandes economias emergentes, 57% consideram que as pesquisas são feitas para sustentar um conjunto pré-definido de prescrições, sem dar espaço para visões alternativas.
Poucas autoridades econômicas de países avançados, segundo a pesquisa do IEO, afirmam ter definido suas políticas com base na produção intelectual do FMI. Mas os documentos divulgados pelo organismo ainda são muito usados pelos países mais pobres, que não tem recursos para desenvolver a sua própria pesquisa.
O foco da auditoria é o FMI, mas suas conclusões servem de lição para instituições brasileiras que conduzem a sua própria pesquisa econômica, como o Banco Central. Não se trata de perder a unidade de pensamento numa instituição que deve se comunicar de forma muito clara. Mas num mundo que está repensando antigos conceitos econômicos, será fundamental arejar a produção intelectual.

Fonte: Valor.

domingo, 19 de junho de 2011

A voz e o silêncio: entrevista com Milton Nascimento

Ele caminha sem pressa pela calçada, mesmo se bastante atrasado para o almoço. Entra tranquilo no Nativo, restaurante de beira de praia na Barra da Tijuca, que frequenta costumeiramente. Ninguém faz alarde com sua presença, como é de praxe no Rio, cidade onde famosos correm no mesmo calçadão que todo mundo. Aproxima-se da reportagem e é cordial, mas não sorri. Vai até o balcão e escolhe uma salada de milho, alface, ervilha, bacon e molho Caesar. Finalmente acomoda-se na mesa que o aguarda no fundo e espera. Não puxa conversa fiada. Milton Nascimento parece confortável no silêncio.
É Paulo Lafayette, seu empresário há dois anos e trabalhando junto há 12, a lançar o primeiro anzol. Comete uma indiscrição proposital ao sugerir que timidez é commodity farta na mesa, referindo-se à confidência da repórter que acaba de conhecer. Milton reconhece a manipulação pela cumplicidade e abre um sorriso generoso - para imediatamente retornar à posição inicial. Busca os olhos apenas de quem conhece - "Paulinho", como chama Lafayette, ou a assessora de imprensa Ana Paula Romeiro. Se acontece de os dois assistentes estarem distraídos com celular, cardápio ou garçom, o músico joga os olhos para o mar. O vento é solar nesta segunda-feira, como na música de Márcio e Lô Borges, dois de seus mais inspirados amigos. Milton vai dizer que fez muitas de suas músicas olhando para aquele pedaço de oceano - mas isso só muito depois.
"Antes eu gostava só de cantar e tocar, mas não de compor. Cantava música dos outros. Até me convencerem que eu tinha que fazer também"
O momento ainda é de silêncio, tão denso que daria para cortar com faca amolada. O homem de "dreadlocks" é Milton Nascimento, não precisa provar nada para ninguém nem facilitar vida de jornalista. A dificuldade é que não dá para iniciar uma entrevista com um dos integrantes do "quarteto de ferro de vertentes masculinas" (ao lado de Gilberto Gil, Caetano Veloso e Chico Buarque, como cravou recentemente a versão nacional da "Rolling Stones"), perguntando por que ele se chama "Bituca" ou por que usa dois relógios quase idênticos, com a mesma hora, no mesmo pulso. Uma resposta é para buscar no Google e a outra para fazer na despedida. Mas é preciso ter manha, é preciso ter graça com quem soltou a voz nas estradas em 1967 e produziu uma explosão de surpresa e júbilo no Maracanãzinho, em tempos em que no Brasil não era aconselhável soltar a voz em lugar algum.
Neste momento, contudo, quem emocionou a multidão cantando "Travessia" está aqui ao lado, comendo ervilhas.
Hoje é dia de show de Paul McCartney, Milton vai, talvez queira contar ao inglês sobre o lixo ocidental, então é bom correr. A votação do Código Florestal está na cabeça de todos nestes dias, vamos de floresta:
- Conta do Acre? Como foi que você foi parar lá?
Ele faz que sim com a cabeça enquanto pede uma Coca Zero sem limão e picanha grelhada, ao ponto. Está rompido o silêncio. Lafayette vai de atum com crosta e Ana escolhe salmão na grelha. O fotógrafo Leo Pinheiro elege a mesma coisa de Milton, não tanto por ser fã inconteste e mais por estratégia para poder fotografar o prato sem incomodar ninguém. A repórter pensa em se fartar de pão e esquece de fazer o pedido.
Divulgação

Nos tempos do Clube da Esquina

- O negócio é o seguinte: antes eu gostava só de cantar e tocar, mas não de compor. Cantava música dos outros. Até me convencerem que eu tinha que fazer também. Falei: "Bom, vou fazer, mas só se tudo o que eu disser for verdade, a minha verdade. Se não for assim, pra mim não interessa".
O "antes" é amplo em se tratando de quem acaba de guardar os óculos escuros. Passa, por exemplo, pela mágica poderosa que parece tocar o velho Edifício Levy, no centro de Belo Horizonte, no fim de 1963. Por ali viviam, na mesma época, os 11 irmãos Borges, o maestro Wagner Tiso, Milton Nascimento com 20 anos de idade, Beto Guedes ainda mais menino e muitos outros, em um embrião do clube mais famoso da música brasileira. "Antes" também define o tempo de tocar violão e cantar, rabiscando músicas na casa da família Borges, que o adotou como o irmão número 12. Bituca era magro, caladão e histriônico, falava "bicho" à beça e trabalhava como um "datilógrafo danado de colosso", nas suas palavras, nas Centrais Elétricas de Furnas. O retrato dessa fase está no delicioso "Os Sonhos não Envelhecem - Histórias do Clube da Esquina", de Márcio Borges - o "Das Baixinhãns", segundo Bituca.
A transição entre a casa dos Borges e os bares e bailes de Belo Horizonte começa de forma assustadora. Wagner Tiso monta um trio e consegue espaço para tocar, mas Milton tem que assumir o contrabaixo, mesmo sem ter um e sem saber como tocar - e o maluco é que dá certo. O pano de fundo desse início são os filmes de Truffaut e Godard, as canções de Gilbert Bécaud e Nico Fidenco no rádio de pilha, e mais João Gilberto, Maysa, Glauber Rocha. E o Brasil conturbado, em sua faceta mais truculenta e dolorida, já totalmente submerso no regime militar.
"Tem uma coisa que falo de Três Pontas. Você conhece, vamos dizer, 20 músicos. Aí passa dois meses sem ir lá e, quando volta, tem 56 novos"
O "antes" também é a época da glória, do Clube da Esquina, de álbuns antológicos, da parceria com Fernando Brant, das canções que foram a trilha de uma geração. "Fé Cega, Faca Amolada" era o hino de estudantes em explosão de hormônios e rebeldia, "Cais" pedia momentos mais introspectivos. Tem quem prefira "Sentinela" e quem pense que "Paula e Bebeto" é a melhor tradução daqueles dias. "Um Girassol da Cor de Seu Cabelo" era a opção "hipponga" junto com as coisas que a gente esquecia de dizer de "Trem Azul". Vieram os shows com Mercedes Sosa e discos junto a Sarah Vaughan, para citar apenas uma das estrelas do jazz seduzidas pela voz do brasileiro. Milton Nascimento saltava de Três Pontas para o mundo todo. Até hoje tem um megafã-clube no Japão e outro na Noruega ("Não me pergunte como, não sei"). Até o dia de uma consagração especial: Milton havia sido convidado a fazer um show em Copenhague, na Dinamarca. Uma bela hora, foi espiar o cartaz. Estava lá: Miles Davis - jazz; fulano de tal - rock; outro sujeito - blues; Milton Nascimento - Milton. Tudo isso é só uma amostra do que era o "antes".
Agora, diante do prato de bolinhos de aipim, Milton inicia uma longa narrativa sobre a jornada de 18 dias que fez ao Acre, há mais de 20 anos. A aventura começou em São Paulo, quando conheceu alguns índios na casa de amigos. Lembra-se bem do dia em que alguns xavantes começaram a cantar para ele:
- Aquilo mexeu com a minha cabeça. Aí resolvi fazer um trabalho na Amazônia, com índios, seringueiros e ribeirinhos.
Reprodução

ao lado dos pais adotivos, Josino e Lília: qualquer maneira de amor vale a pena

Esse pé na estrada na Amazônia foi no fim dos 80, época em que praticamente ninguém falava dos povos da floresta - a não ser em episódios dramáticos como o do assassinato do líder seringueiro Chico Mendes, quando holofotes de todo o mundo iluminaram a pequena Xapuri e o Brasil meio que acordou para os conflitos na floresta. Milton Nascimento, carreira no topo, decidiu subir o sinuoso Juruá, afluente do Solimões, em barquinho que enguiçava ou sentado longas horas em canoa. Depois, aventurou-se ainda mais, entrando no misterioso rio Amônia. Dormia no "hotel do Macedo", como ele chama o acampamento de madeira e cipó que o guia seringueiro montava nas paradas do grupo - Milton faz uma inflexão na voz toda vez que diz "hotel", como se a palavra ganhasse aspas orais.
- Vocês montavam a rede e dormiam na mata, com todos os barulhos?
- Isso, com todos os sons da floresta.
Era a década das campanhas heroicas. O irlandês Bob Geldof lutava contra a fome na Etiópia produzindo o Live Aid. O inglês Sting se juntou ao cacique caiapó Raoni na batalha contra Kararaô (Belo Monte é sua versão moderna). Quase 50 dos maiores músicos do mundo gravaram "We Are the World" para combater a fome na África. Milton mergulhava na Amazonia, buscando inspiração para suas canções e procurando uma aldeia de índios pouco conhecidos, os ashaninkas. Eles se vestem com roupas longas, fisicamente exibem traços andinos. "É um povo que parece inca", explica.
Milton confessa ser ruim de datas (aconselha a cada um de seus mais de cem afilhados que telefonem no dia anterior a seus aniversários, o informem da data, e ele garante o parabéns no dia certo), mas carrega as lembranças de quem era. Lembra vividamente do pernoite ao lado da casa de um ribeirinho, em noite de lua e estrela. Ou de quando a canoa finalmente se aproximou da aldeia Ashaninka e do menino que surgiu em cima do barranco.
- Ele viu nossas canoas e pulou no rio, nadou bonito pra caramba. Fiquei bobo. Chegou do outro lado, andou floresta adentro e desapareceu.
O menino era Benki ("Benke", na canção que Milton dedicou a ele), filho do cacique e hoje jovem pajé. Uma forte amizade começou ali entre os dois e segue até hoje.
Folhapress

O “quarteto de ferro de vertentes masculinas”, segundo versão nacional recente da revista “Rolling Stones” nas fotos à esquerda: Milton Nascimento, Caetano Veloso, Chico Buarque (foto) e Gilberto Gil

Milton dedica respostas longas a cada questão. É difícil mudar de tema - com delicadeza ele volta ao ponto que pretende falar. Não se enquadra um poeta em uma hora de conversa - quem conduz a entrevista é ele, inclusive no ritmo, na fala pausada, nos longos intervalos. Alguém lembra que o jeito tranquilo do compositor falar remete à maneira que Thelonious Monk tocava. O monstro do blues ia administrando os silêncios, fazendo com que se integrassem à música, que fossem como notas. Suas pausas também tinham ritmo. Milton Nascimento fala como quem faz música.
Sabe-se pouco da vida desse carioca de Laranjeiras que foi se criar nas Gerais. Aos 2 anos, martelava o piano da casa dos avós, um predestinado já em 1942. A mãe de sangue morreu quando ele era pequeno, o pai biológico foi ausente. Milton foi adotado por Lília, a filha da madrinha, moça que havia estudado com Heitor Villa-Lobos. Lília casou-se com Josino, homem que gostava de inventar coisas, era radioamador e amava astronomia. Um telescópio em casa mostrava estrelas e planetas às crianças - influência fácil de perceber nas canções futuras. "Num trem de ferro, a nova família, Lília, Milton e Josino, seguiu para Três Pontas", lê-se no site do músico. O menino ganhou gaita e sanfoninha e passava horas na varanda completando com a voz as notas que faltavam na sanfona. Surgia ali o cantor.
Na casa da Lília e Josino não havia nada a temer, senão o correr da luta. O casal adotou três filhos - Milton, Fernando e Beth. Os dois menores são brancos, mas a família não fez distinção de nada e cuidou de todos com igual carinho. Depois de muito tempo, Lília engravidou e nasceu Jaceline. Cresceram todos no amoroso solar de Três Pontas que exalava perfume de dama-da-noite. Milton anda em bando até hoje. Ao Nativo, que indicou para este "À Mesa com Valor", vai sempre com irmãos, sobrinhos, assessores e quem mais chegar.
Milton quer falar uma coisa, mas não adivinha onde ela anda. De repente, lembra-se:
- Tem uma coisa que esqueci de falar. Quando a gente estava no barco e cruzava uma canoa, eles falavam "Txai". Achei bonito, perguntei ao Macedo o que era aquilo. "Txai quer dizer: mais que amigo, mais que irmão. A metade de mim que habita em ti e a metade de ti que habita em mim". Tudo isso em quatro letras. São mais que poetas. Virou o sentido do disco, o sentido de tudo.
"Txai", o álbum, está fora de catálogo e é difícil de encontrar. Por causa dele, Milton foi à festa do Grammy pela primeira vez, indicado para Best World Music. Ele diz que não queria sair da Amazônia e ao voltar para o Rio ficou 40 dias em choque. Esquece a carne no prato e fala do dia em que quase presenciou um empate, a forma de luta pacífica dos seringueiros de se deitarem no chão impedindo que as motosserras derrubassem as árvores. No caso, eram índios contra tratores. Quando chegou à cena de Avatar, viu índios de mãos dadas e máquinas saindo de cena. Supõe que os desmatadores souberam que ele andava por ali e se mandaram.
Flávio Florido/Folhapress

Milton Nascimento e Gilberto Gil

- Se a gente não está por lá, matam as pessoas. Passam com as máquinas em cima.
Ele come mais um pedaço de carne e a pausa é a deixa para passarmos da floresta a Três Pontas. O disco que acaba de lançar, "... E a Gente Sonhando", foi todo feito com gente de lá. Neste sábado, no Via Funchal, em São Paulo, Milton faz um megasshow, com coral no palco, abrindo nova turnê. Claro, vai ser, vai ser, vai ter de ser, vai ser muito tranquilo.
- E esse disco novo, "E a Gente Sonhando"?
Há várias histórias por trás desse álbum bem produzido. A primeira é sobre a canção que dá nome à obra. Foi a segunda composição inteira que fez em sua vida. É a música que Milton fez para a rua Rio de Janeiro, em Belo Horizonte, a preferida nas andanças daqueles jovens mineiros que queriam mudar o mundo.
- A gente andava por ela, parecia que estava em um sonho. Escrevi até um conto sobre essa rua, mas perdi. A sorte minha é que fiz a música.
Outra história tem a ver com o livro "The Brazilian Sound: Samba, Bossa Nova and the Popular Music of Brazil", de Chris McGowan e Ricardo Pessanha. Os autores fizeram um mapa, uma espécie de raio X musical do Brasil feito pelas capitais. Rio indica samba, Salvador sugere axé e assim por diante. Em Belo Horizonte, um traçado lembrando uma estrada leva a Três Pontas. O livro caiu na mão de Milton, que se surpreendeu.
- Levei um susto. Três Pontas ali, a única cidade mencionada que não era capital. Resolvi ir visitar meus pais e encontrei o Marco [Elizeo], com quem faço música desde criança. Mostrei o livro a ele e falei: Marco, e agora? Como é que vai ser? O Wagner [Tiso] e eu não estamos mais aí. E agora?
Folhapress

O compositor em festival de 1966, em São Paulo: Milton soltou a voz nas estradas em 1967, com seu primeiro disco, “Travessia”

O interlocutor resolveu levar Milton para jantar em um local distante. Chegando lá, foi surpreendido por dezenas de jovens músicos que tocavam rock, faziam "cover" de Pink Floyd e Rolling Stones, arrasavam. No dia seguinte, a mesma coisa, em outra fazenda.
- Lá dentro, na cozinha, que é o lugar preferido dos mineiros, estavam muitos músicos. Tocavam pra caramba. De vez em quando faziam um coro. Isso foi na noite que Marte mais se aproximou da Terra. Lembrei desse negócio e falei "Ihhhh. Marte e Três Pontas, alguma coisa vai dar". E deu.
A cada dia Milton descobria uma cena cultural nova e viva em Três Pontas, com músicos que brotavam pelos cantos. Chamou o povo para uma festa na casa de Jaceline e começou a pensar em gravar uma faixa de um CD seu com aqueles três-pontanos todos.
- Tem uma coisa que falo de Três Pontas. Você conhece, vamos dizer, 20 músicos. Aí passa dois meses sem ir lá e, quando volta, tem 56 novos. Cada vez é assim. Uma meninadinha com tudo.
Em Minas, diz Caetano Veloso no prefácio do livro de Márcio Borges, o caldo engrossa, o tempero entranha, o sentimento se verticaliza. Foi assim com Milton espiando o que acontecia por trás dos montes. A coisa foi tomando corpo, virou um disco inteiro. Escutou novas bandas e descobriu jovens talentos. A maioria dos músicos que toca em seu disco, coproduzido com Marco Elizeo, não tem 25 anos.
Leo Pinheiro/Valor

No Nativo: neste sábado, o cantor faz grande show em São Paulo para iniciar a turnê de seu novo disco

Milton tem pela frente uma fila de espetáculos programados. No dia 24, apresenta-se no Lincoln Center, em Nova York, e no dia seguinte participa do festival de jazz em Montreal, quase 20 anos depois da última vez em que esteve lá. No Brasil, vai abrir o Rock in Rio cantando a segunda parte de "Love of My Life". Na primeira parte quem canta é Freddie Mercury, o mítico vocalista do Queen, em imagens gravadas em 1985.
Ninguém quer sobremesa nem café. Milton atravessa devagar a avenida e comenta que não conhece Paul McCartney pessoalmente. Foi ao show do Beatle em São Paulo e à noite irá de novo. Tem também almoço marcado para o dia seguinte com Antonio Banderas, a pedido do espanhol. "Ele é louco para conhecer o Milton", diz Ana Paula. Quando fez o filme "Imagining Argentina", Banderas ouviu alguém cantarolando uma música no set e se encantou. Era "Maria Maria". Informado de que a canção era de um brasileiro, pegou o telefone e ligou para Milton, que liberou a trilha. Desde então, quer conhecer Bituca e agradecer.
O empresário busca seu carro e para em plena avenida Lúcio Costa, enquanto o fotógrafo procura aproveitar a luz de começo de tarde. Milton está sorridente, mas é sempre indecifrável. Caetano não poderia ter descrito melhor - "sua atmosfera a um tempo celestial e triste, sua aura mística e sexual". Um casal espera o fim da sessão e corre para a tietagem - autógrafo e clique. Lafayette vai se transformando em personagem de Almodóvar. "Chega! Ele tem que descansar!", ordena.
Milton se levanta, alcança a caminhonete e senta-se. Está fechando a porta quando uma mulher surge do meio da rua, gritando seu nome, um papel na mão. "Milton, Milton", repete a esbaforida. "Sou fulana, corretora de imóveis, trabalho aqui na Barra", e arremessa o cartão de visita no colo do compositor, por acaso. Milton vive há muitos anos em uma casa no Itanhangá, perto do Golf Club. Da janela, vê a Pedra da Gávea e a floresta da Tijuca. Diz que mora no Rio, mas tem a vista das montanhas. Ele não parece ter planos de se mudar, mas continua sorridente e intransponível enquanto Paulinho acelera e a mulher arremata com "qualquer coisa que você precisar...". Milton ainda acena, balançando o misterioso braço dos dois relógios.

Fonte: Eu & Fim de Semana - Valor.