segunda-feira, 27 de maio de 2013

O bem precioso

Fausto tinha lá seus gostos e manias. Era um grande colecionador de moedas. Tinha moedas de quase todos os países do mundo. Uma vez, voltando de um tour pela África, teve que pagar excesso de bagagem por conta das moedinhas. Outro gosto de Fausto era por relógios. Em sua coleção de Rolex, por exemplo, era possível encontrar raridades da marca.

Fausto também tinha uma mania: observava tudo. Conversas, pessoas, objetos, lugares etc. Ele certamente seria um bom detetive, mas optou por cursar medicina, já que cresceu ouvindo as histórias de dois renomados cardiologistas: seu pai e seu avô.

Pois bem, Fausto costumava observar em tudo. Se entrava num restaurante conseguia numa discreta passada de olhos mapear as pessoas, as roupas de cada uma e até as bebidas em cada mesa. Uma vez almoçando em um restaurante com frente para a rua, ele percebeu que ali funcionava um esquema de venda de drogas. Como era um lugar frequentado por gente mais granfina, a presença de policiais era constante, mas a turma da droga elaborou um esquema de permuta de vendedores que passava desapercebido pela polícia. Duas refeições no mesmo local foram suficientes para Fausto perceber a lógica da coisa. Bem, ele resolveu ficar calado. Qualquer coisa relacionada ao crime o amedrontava.

Diferente do pai e do avô, ele resolveu seguir o campo da psicanálise. O fato de ser um ótimo observador lhe dava grande vantagem em seu trabalho. Nenhum detalhe em seus clientes passava em branco. Uma vez recebeu uma pomposa proposta do governo para interrogar alguns criminosos, mas o medo em lidar com esse tipo de gente impediu que ele aceitasse. E o que ganhava em seu consultório já era suficiente para bancar os seus vícios.

Mas nem só de louros essa mania de observador era marcada. Uma vez foi a uma festinha na casa de um amigo. Ele não conhecia bem o grupo de amigos do anfitrião, mas aceitou o convite. Lá havia gente de todos os tipos: um senhor usando uma cinta que o deixava parecido com o Jô Soares; uma mulher que usava uma calça tão apertada que a impedia de andar direito (anda como uma múmia, pensava Fausto); uma outra que usava uma daquelas calcinhas só de fios (ficou com calafrio só de pensar o sufoco que deve ser usar aquele negócio).

Nessas olhadelas ele também viu a Emanuela. Seu instinto viril escolheu aquela criatura para observar em detalhes. Fausto continuava a conversar em um grupinho de pessoas, mas a sua habilidade permitia que com total discrição seu “objeto” fosse estudado. 

Em poucos minutos eis a montagem da divina dama aos olhos de Fausto: 
vestido preto, meio palmo acima do joelho; bota de couro cano longo, talvez nº 37; pulseira dourada de quatro voltas no braço direito; relógio dourado no braço esquerdo; cabelos um pouco abaixo do ombro, levemente ondulados nas pontas; cordão dourado com um pingente; brincos pequenos e luminosos; a distância da bota até o vestido em algo entorno de 25,3 cm; um sorriso angelical...

Ao final da festa, já com menos convidados, Fausto conseguiu aproximação com a bela Emanuela e até anotou seu número de telefone. Alguns dias mais tarde os dois começaram a se falar e depois do primeiro encontro era só diversão entre os dois. Um clima de reciprocidade parecia envolver o desejo deles.

Como Fausto costumava ir para o seu consultório logo no primeiro horário, com o tempo Emanuela costumava ficar dormindo até um pouco mais tarde no apartamento dele. Embora observar fosse o seu forte, com Emanuela parecia que Fausto deixava automaticamente de exercitar seu dom. Com o tempo foi começando a revelar sobre suas manias e gostos, mas pouco perguntava sobre ela. 

Um dia, ao chegar em casa, Fausto sentiu falta de alguns pequenos objetos na sala. De pronto, correu para o quarto onde estavam as suas coleções de relógios e moedas. Nada havia mais de relógios e de algumas moedas das mais raras. Sobre a cama havia um bilhete: 

“Obrigado pelos dias que passamos juntos. Agradeço pelo carinho, pelas conversas engraçadas (nunca vou esquecer do jeito que você me contou aquela história de seu paciente que pensava ser o Sarney...hehe) e toda a sua dedicação. Foram os melhores meses da minha vida. Queria mesmo continuar com você, mas meu instinto falou mais alto. Perdão. Beijos da sempre sua, Manu”.

Ao ver-se naquela situação, Fausto ficou indignado consigo mesmo. Como que um psiquiatra como ele deixara se enganar daquela forma? Como que sua porcaria de habilidade observadora havia ficado cega quanto à Manu? Como ele, sempre tão reservado, havia compartilhado com ela sobre seus mais interiores e particulares sentimentos? Como? Como?

Tempos depois Fausto já havia conseguido montar outra coleção de relógios e até conseguiu algumas moedas raras. Claro que a coleção não era a mesma, mas tudo bem. Porém, Fausto sentia que algo ainda estava faltando. Passou dias revirando o apartamento e nada de resposta.

Um dia, depois de reler o bilhete deixado por Manu, ele descobriu: ela havia lhe roubado o coração. Desde então ele não tira da cabeça aquela imagem da Emanuela quando da primeira vez que a viu naquela festa, com vestido preto e um sorriso angelical.

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