domingo, 12 de junho de 2011

Telefonemas de João Gilberto

Por Zuza Homem de Mello

Haverá voz mais nítida que a do canto de João Gilberto? No país tão ligado à sua música popular, quem revolucionou a forma de se cantar canção foi um incansável perseguidor da perfeição.
Embora singelo no indispensável, qualquer espetáculo de João Gilberto é invariavelmente cercado de um temor antecipado, quando não verdadeiro pavor, pelas exigências sempre pertinentes quanto ao aspecto essencial no seu caso: a qualidade do som, que, afinal, pode ser resumida na ampliação de apenas dois microfones, o da voz e o do violão. Nada mais. Com toda razão, João tem sempre a máxima preocupação com que sua voz seja ouvida com nitidez absoluta, independentemente do tamanho ou da capacidade da sala de seus recitais, provavelmente cada vez mais raros agora que atinge os 80 anos, nesta sexta-feira. São anunciados dois em setembro, um em São Paulo, outro no Rio.
Sua justa pretensão é que o som de sua voz chegue aos ouvidos de cada um como se ele estivesse a centímetros de distância, com clareza, limpidez, com definição irretocável e nenhum tipo de artifício que possa afetar a pureza de seu canto. Sem fazer concessões, João respeita a canção sem incutir maneirismos ou malabarismos que coloquem o intérprete acima do compositor. Em última análise, sua meta é dar vida a uma canção com o timbre das suas cordas vocais e as de seu violão.
Alguns não conseguem entender, mas João vive durante a noite para sua música, tocando violão por horas e horas a fio até hoje, com a mesma determinação e mesmo apuro que tinha com a metade de sua idade atual.
Para João Gilberto, o telefone não é para dar ou receber recados, é o seu meio preferido e mais constante de comunicação pessoal
O mesmo rigor com a emissão vocal quando canta se percebe nos decantados telefonemas, também sempre a altas horas da noite. Ouvir João Gilberto falar é outro tipo de prazer para ouvidos musicais exigentes. Não se perde uma vogal ou consoante. Não é só que ele canta como quem fala; João também fala como quem canta, articula cada palavra com dicção tão perfeita que, mesmo sem gritar, nada se perde do que diz, até com o fone descolado do ouvido.
Seus amigos dos anos 50 dão conta de sua constante preocupação em ser ouvido com perfeita clareza, independentemente da distância. Ronaldo Bôscoli contava que João saía do apartamento caminhando pelo corredor e distanciando-se aos poucos, enquanto emitia o mesmo som, indo cada vez mais longe para avaliar até que ponto poderia ser ouvido nitidamente sem necessidade de alterar o volume de voz. Sua preocupação com a emissão de voz foi sempre uma constante exercitada exaustivamente.
O sotaque de João Gilberto não é tipicamente o de um baiano, não abrindo em demasia certas vogais; seus "esses" intermediários não soam como "ch" mas são convenientemente sibilados como deve ser o "S", uma letra surda, sem vibração das cordas vocais, um som sussurrado. Na função plural, o "S" nunca deixa de ser ouvido nos finais das palavras e quando tem som de "Z", como em Brasil, João emite um zunido instantâneo com a conveniente vibração das cordas vocais.
Para João Gilberto, o telefone não é para dar ou receber recados, é o seu meio preferido e mais constante de comunicação pessoal. João adora passar horas e horas conversando ao telefone, independentemente da distância geográfica que o separa do interlocutor. A maioria de quem com ele já conversou nunca teve João Gilberto pela frente, esteve inevitavelmente na outra ponta de uma ligação telefônica. Um telefonema seu tem mesmo a função de fazer visitas noturnas sob a forma de diálogos extensos e deliciosos. É como ele gosta de conversar, dissertando sobre os mais diferentes assuntos, quase sempre sem abordar o que todos imaginam ser obrigatoriamente o foco de suas conversas, a música.
A impressionante memória sobre os hábitos de seus interlocutores, o que é simplesmente inacreditável, juntamente com sua surpreendente capacidade de estar sempre atualizado com tudo o que se possa imaginar, contraste gritante com o inabalável recolhimento em que vive, são motivos para extrapolar a admiração por João Gilberto. Para os contemplados por sua simpatia e pela invejada oportunidade de travar um diálogo de horas e horas com o músico considerado genial pelos maiores artistas do universo, um telefonema com João Gilberto é uma experiência.
Muitas vezes, o diálogo é interrompido por um pedido seu para algo que não se sabe exatamente o que é. O intervalo pode ser tão curto, como em regra se aguarda, mas também pode durar o tempo de uma refeição completa, que ele fará com a linha aberta como sendo mais vantajoso do que interromper para ligar mais tarde.
Quanto à variedade de assuntos, em que o futebol é quase sempre o preferido e abordado com conhecimento tático de um técnico profissional, João discorre sobre todos os temas possíveis: pode falar sobre outro esporte exaltando sua admiração por atletas brasileiros; pode descrever o passarinho que recentemente viu infeliz na janela, penalizado com o sentimento de tristeza da avezinha; pode se condoer de uma formiguinha esmagada por acaso; pode descrever com precisão o que está acontecendo de mais relevante na cidade do interlocutor; pode cantarolar trechos de velhas canções ou criar sons onomatopaicos de assombrosa originalidade. E se, por acaso, o assunto música vier à tona, João não consegue segurar sua empolgação sem limite, sua fé no futuro dos músicos, compositores e cantores, revelando um sentimento de brasilidade contagiante.
Um novo círculo de amigos de João Gilberto acredita piamente estar se comunicando com ele através do teclado, via um facebook que existe com seu nome. Pode ser, mas é difícil. Se for verdade, estão perdendo o elemento fundamental da comunicação que João Gilberto usa desde quando caminhava lado a lado com músicos por Copacabana, convencendo-os das ideias que tinha sobre a canção brasileira. Quando falava sobre o ritmo, a leveza da interpretação e, inconformado com os infortúnios dos amores que dominavam as letras das canções da época, insistia que se fizesse letras positivas, falando de coisas belas sobre o amor. Esse elemento fundamental, que não existe na comunicação via net, é sua voz.
Essa voz sedutora, convincente, que se expressa em depurada forma do idioma português do Brasil, é o meio de João Gilberto se comunicar com seu estranho, indefinido e imensurável círculo de privilegiados conversadores telefônicos. Essa voz clara e precisa, tal como a batida de seu violão, soa viva pelo telefone nas altas madrugadas. Vem com a marca indelével que cerca a fascinante música de João Gilberto: o inesperado.

Fonte: Valor Econômico - Eu & Fim de semana.

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